Há considerações que todos temos o dever de pensar e, eventualmente, de escrever. Porque todo o fel que foi destilado este fim de semana por gente bafienta não pode nem deve caber numa sociedade dita evoluída. Não pode nem deve passar sem ser devidamente notado, que de gente mesquinha está este mundo repleto...
Este meu texto é um grito de revolta, um entre tantos que não saíram para a vida publica, para a esfera das coisas que lemos todos os dias. Mas manda a minha consciência que o dê porque basta de estupidez e de hipocrisia. Porque todos temos o direito de não gostar dos outros, mas não devemos escamotear tudo o que nos deram com a sua existência...
José Saramago era um homem dificil. Tinha algumas considerações que feriam susceptibilidades, especialmente aquelas bacocas que fazem do tabu uma forma de vida. Escreveu sempre o que lhe ia na mente e sobre o que achava que devia. Nada ficou a dever à sua consciência, nada do que pensou deixou de dizer. E nunca fugiu a nenhuma troca de argumentos com aqueles que se consideravam mais ofendidos com a sua coerência, terá até tido o mérito de trazer pessoas para discussões das quais estas nunca teriam ideia de fazer parte...
O homem morre, a obra fica. Uma vasta obra, diga-se, merecedora até de um prémio nobel. Numa altura em que a censura do cavaquismo se fez sentir através do ministério da cultura, à época servilmente dirigido por uma inenarrável personagem de seu nome Sousa Lara, Saramago seguiu em frente, sempre dado a polémicas e a dizer aquilo que a liberdade que o seu povo conquistou lhe permitia. E nunca olhou para trás porque isso de nada valeria. E por tal censura, teve a coragem de ir para outra terra porque aqui se achou ofendido...
Saramago merece o nosso respeito pela frontalidade e pela objectividade das suas análises. Poeta mediano, no seu próprio entendimento, revelou-se em obras com base histórica, na contestação do que sempre pode parecer politicamente correcto, mas historicamente bastante passível de ser discutido. Nunca deixou de ser comunista, pelo que dificilmente os seus escritos deixariam de ter um cunho avermelhado. Mas, mais importante, nunca deixou de ser coerente com a sua forma de pensar...
Considero hoje, como ja escrevi algumas vezes, que Levantado do Chão deveria ser obra ensinada aos nossos filhos. É uma verdade que a direita conservadora tem tentado esconder. Como também acho que Salazar deveria ser assunto de estudo. E uma vez mais, objectivamente, como uma verdade que a direita tem tentado branquear. À memória de nossos pais, porque a história é feita de memórias, daquelas que a minha mãe falava, de noites em que dormia à porta da padaria para poder ter um quarto de pão e vendo passar os criados de gente rica que levavam todo o pão que queriam...
Por isso ainda hoje recuso participar numa pomposa cerimónia que existe lá na minha terra, à qual chamam de tradição, denominada Sopa dos Feijões. Em tempos não muito recuados, na sexta-feira santa, as crianças pobres da terra juntavam-se ao portão da quinta dos senhores da aldeia, batendo com tachos no portão. A "benemérita" família abria então os portões, servindo às crianças esfomeadas uma sopa de feijões com broa. Hoje glorifica-se a fome daqueles dias e chama-se-lhe tradições. Eu não alinho e repudio quem acha isto tudo muito natural. Como se fosse normal os pobres passarem fome. Se calhar até é. Cada vez mais...
Vai em paz, camarada. Nem sempre gostei do que tu escrevias, nem sempre concordei com tudo o que afirmavas, mas o todo é sempre a soma de todas as partes. É preciso abrangência de entendimento para passar para além do óbvio. Como diria o principezinho, "o essencial é invisível aos olhos". E o essencial foi toda a coragem e coerência que nos ofereceste ao longo dos anos. Tenho para mim que quando um caixão sai à rua e o o mundo para para bater palmas, ali vai alguém bom. Como fizemos com Álvaro Cunhal. Como fizemos com Amália Rodrigues. Como fizemos com mestre Solnado. Como fizemos contigo. Porque a memória do povo pode adormecer, mas será sempre inalienável...
Um ultimo apontamento para sublinhar a mesquinhez do senhor aníbal. Não fez falta, é certo, porque só faz falta quem está, mas demonstrou que é uma personagem menor neste tabuleiro da vida que é a história e que continua a ser um indivíduo mal formado. Mas foi coerente com o seu carácter, isso não lhe podemos negar. E preferi ver viçosos cravos vermelhos, que laranjeiras cheias de piolho e mofo...
Até sempre, camarada. A luta continua. Um dia, havemos todos de ver-nos por aí...
Porque, apesar de todo o mal que lhes fazemos, as crianças serão sempre o melhor que o mundo tem para nos dar. E depois de um dia de escola, seguido de um treino de futebol, que melhor surpresa?
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